Querem tirar nosso direito ao casamento

19 de Setembro, 2023

Há quase um século, a Liga pela Reforma Sexual, fundada em 1928 por pesquisadores e ativistas de diversas partes do mundo, divulgou uma plataforma com suas principais reivindicações. Um deles era o da "liberação da relação conjugal da dominação da Igreja, com reforma das leis sobre casamento e divórcio".

A luta pela laicização do casamento e a ampliação da conjugalidade para pessoas do mesmo sexo é bastante antiga e uma das primeiras reivindicações formuladas pelo ativismo LGBTI+.

No Brasil, ela já aparece aparece na origem do movimento, ainda sob a ditadura de 1964. Na época, foi comum que famílias de origem de LGBTI+ mortos em decorrência da AIDS, que os haviam rejeitado quando eles assumiram suas sexualidades, ressurgissem de repente para reivindicar um eventual espólio (geralmente uma casa ou um apartamento que coabitavam), deixando o companheiro do falecido sem nenhum direito. Assim, a despeito de o casamento reproduzir um modelo heteropatriarcal de familia, ele poderia ter feito uma enorme diferença para a vida de milhares de pessoas LGBTI+ que foram vítimas dessas injustiças.

O casamento se tornou uma bandeira central da comunidade LGBTI+ também porque parecia o caminho natural para restituir a esse grupo exatamente aquilo de que foi privado por força do preconceito: uma família. Rejeitadas pelos pais e por outros parentes, muitas dessas pessoas acabavam expulsas ou tinham de fugir de casa.

Assim, sem negar o caráter conservador do casamento, a luta nunca foi apenas era pra reproduzir uma instituição cristã e familista, mas também por assegurar um tratamento igualitário do ponto de vista dos direitos familiares e sucessórios, dimensões práticas da vida de qualquer casal na nossa sociedade.

Por tudo isso, a decisão de 2011 do STF é tão relevante. A partir dela e da Resolução 175 de 2013 do CNJ, não se pode mais sonegar direitos às uniões e casamentos LGBTI+. Até hoje.

Deputados estão votando um PL para retirar esse direito. Precisamos resistir e nos mobilizar.

Cobrem seus deputados, posicionem suas marcas. Façam barulho nas redes e fora dela. Nossas vidas não são trampolim para legisladores.

Muita gente tem afirmado que a proposta legislativa de proibição do casamento homoafetivo é flagrantemente inconstitucional, afinal, o STF, em 2011, reconheceu as uniões homoafetivas como entidades familiares e, portanto, merecedoras de proteção do Estado.

As afirmações estão corretas. Mas precisamos ter uma compreensão menos formalista e mais realista dos direitos. Em maio de 2021, uma década após a decisão do STF, publiquei artigo no jornal O Globo intitulado “os direitos LGBT+, tão recentes, correm riscos”. Eu afirmava isso, como sigo afirmando agora, porque nenhum direito está escrito em pedra. Nenhuma interpretação é para sempre. Os avanços que tivemos foram graças à mobilização e luta, a política molda os contornos do direito e sua efetividade.

Sim, caso aprovado o PL hoje na Comissão, ainda haverá muitas fases do processo legislativo, da sanção presidencial e podemos exercitar o controle judicial e até de convencionalidade desses dispositivos absurdos e inconstitucionais. É provável, mantendo-se as condições normais de pressão e temperatura da política brasileira, que consigamos barrar isso.

No entanto, em janeiro deste ano, quase não restou um STF de pé. A democracia venceu uma eleição, mas o bolsonarismo segue à espreita. Não faltam exemplos no mundo de retrocessos a direitos (ex. Itália), inclusive pela via judicial das Supremas Cortes (ex. EUA).

Tudo isso pra dizer que nossa vigilância deve ser permanente. Usaremos de todos instrumentos, inclusive judiciais, para resistir às ameaças conservadoras. Mas insisto: nossa mobilização e a consciência política da precariedade da nossa cidadania são essenciais.

Temos um caminho longo pra tirar os direitos assegurados formalmente do papel. E temos de preservar as conquistas obtidas até aqui. Não podemos terceirizar isso para o STF, para o Congresso, para o Presidente da República. Isso é tarefa que nos cabe. Quem veio antes lutou para termos esses direitos e nosso dever é lutar para que ele siga existindo para as próximas gerações.

Deveríamos estar discutindo como ampliar a nossa proteção legal, com uma lei do casamento igualitário, uma lei de identidade de gênero, um marco de combate à violência LGBTIfóbica e uma política nacional de empregabilidade e renda para as pessoas LGBTI+. Mas estamos sendo atacados e devemos reagir. NÃO PASSARÃO!

Renan Quinalha

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