Da vergonha, emergiu o orgulho. De tão pouco, temos feito muito.

02 de Junho, 2023

Junho é um mês repleto de simbolismo para o movimento de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e intersexo (LGBTI+). Todo junho, pelo mundo afora, pessoas se reúnem para celebrar, de diferentes maneiras, o orgulho das múltiplas orientações sexuais e identidades de gênero.

Foi há quase cinquenta anos, mais precisamente no dia 28 de junho de 1969, que ocorreu, na cidade de Nova Iorque (EUA), a famosa revolta no bar Stonewall Inn, um verdadeiro marco para as lutas pela diversidade sexual e de gênero. Contra a repressão policial, vigilante de um código moral conservador, o único caminho possível era existir, insistir e resistir. Esse foi o ousado programa político das centenas de pessoas que se levantaram contra a habitual violência do Estado e que foram, por isso, considerados pioneiros do movimento tal como hoje o conhecemos. Não foi a primeira vez em que pessoas LGBTI+ se levantaram em luta, mas ali algo especial efetivamente aconteceu para nossa história, pois o orgulho se tornou nossa bandeira central.


Mas como é que a vergonha e o estigma, alimentados pelo preconceito de uma sociedade hétero e cisnormativa, foram substituídos pelo orgulho e pela identidade política?

Essa não é uma pergunta simples e não há um único turning point capaz de explicar, isoladamente, tamanho deslocamento.

Por séculos, acusados de pecadores nas Igrejas, de doentes nos hospitais e manicômios, de criminosos no sistema penal e prisional, de ameaçadores à ordem pública e aos bons costumes pelos poderes estatais, LGBTI+ foram permanentemente atravessados pelos discursos e práticas de controle político e sexual de suas subjetividades.

O “choque da injúria”, para usar uma expressão do filósofo Didier Eribon, é uma experiência constitutiva central em qualquer pessoa LGBT. Ela pode se consumar em um ato concreto de violência ou permanecer, virtualmente, no horizonte como uma ameaça. Nem sempre a injúria precisa ser proferida e realizada, mas ela sempre estará ali presente no autoimagem e na auto-estima de todes nós.

A injúria, assim, não é apenas uma fala que descreve, mas expressa um domínio, um poder de ferir daquele que pode nomear sobre o outro, que é então objetificado. Ainda nas palavras de Eribon, “a injúria me diz o que sou na medida em que me faz ser o que sou”. Essa onipresença do insulto, que está sempre às voltas dos corpos LGBTI+ como ameaça potencial ou concreta, é um dos traços mais comuns da nossa comunidade.

Assim, a identidade LGBT é, em um primeiro momento, uma imposição dos poderes e discursos que constituem as subjetividades, atravessam os corpos e normalizam os desejos. Mas essa mesma identidade, outrora estigmatizada, vem sendo cada vez mais ressignificada como um suporte para a ação política e a conquista dos direitos de igualdade. 

Levou muito tempo para que as pessoas pudessem assumir sua orientação sexual ou identidade de gênero abertamente. Ainda mais tempo para que lograssem políticas públicas e reconhecimento estatal. E, apesar das enormes violências e restrições ainda presentes contra os segmentos LGBTI+ no mundo e no nosso país, os avanços só foram possíveis graças às lutas e à organização desse movimento que levanta a bandeira do orgulho.

Da vergonha, emergiu o orgulho. De tão pouco, temos feito muito.

Renan Quinalha

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