61 anos de 1964: a ditadura que ainda não passou
02 de Abril de 2025
Em 2012, então um jovem mestre que tinha acabado de defender, na Faculdade de Direito da USP, um dos primeiros trabalhos sobre justiça de transição no país, fui chamado para trabalhar como advogado e assessor da Comissão da Verdade em São Paulo. Nessa busca de esclarecimentos de determinados fatos históricos, sobretudo as violações de direitos humanos por parte de agentes públicos e sua autoria, acabamos nos deparando com a necessidade de, além de testemunhos orais, termos também uma pesquisa documental em acervos públicos e privados.
Esse período de trabalho da Comissão da Verdade coincidiu com um período de descoberta pessoal. Depois de alguns anos de vivências e experimentações mais ou menos clandestinas, decidir assumir publicamente minha homossexualidade. Já vinha abrindo minha sexualidade para amigos e familiares mais próximos, mas foi neste momento que de autodescoberta que mergulhei a fundo em referências teóricas LGBTQIA+ e decidi me tornar um especialista no assunto.
Diante dessa decisão, foi natural direcionar meus interesses, também dentro da Comissão, para evidenciar como a regulação do gênero e da sexualidade foi uma dimensão importante da ditadura brasileira.
Até então, prevalecia a leitura de que a ditadura brasileira, em verdade, teria sido uma “ditabranda” em termos morais. Afinal, para alguns, tivemos uma contracultura pulsante: Secos & Molhados, Dzi Croquettes, beijo de Caetano em Gil no palco, etc.
No entanto, o que tal análise parece ignorar é que todas essas movimentações eram fruto de um processo mais profundo de mudanças culturais e sociais que vinham sendo germinadas nas décadas anteriores, com a urbanização intensificada, as mudanças familiares, os conflitos geracionais com a emergência de uma “juventude rebelde” e o questionamento de papeis tradicionais de gênero e das práticas reprodutivas de sexualidade. Esse era um fenômeno global no pós-II Guerra, não uma jaboticaba brasileira que a ditadura tenha incentivado. Desenvolveu-se uma consciência rebelde, mais apesar da ditadura do que por conta da mesma.
Na realidade, hoje se sabe melhor como a censura moral foi intensificada na ditadura. O complexo aparato repressivo se valeu da política, das agências de informação e espionagem, de censores nas diversas linguagens artísticas e no jornalismo para coibir a circulação de ideias e valores que pudessem desafiar a ordem política e sexual vigente.
Na medida em que avançava nas pesquisas que posteriormente deram origem ao meu livro Contra a Moral e os Bons Costumes, notava que era abundante a quantidade de fontes historiográficas que permitiram reconstruir lacunas desse passado.
Mergulhei então em um conjunto de documentos impressos, revistas, jornais, qualquer tipo de material que ajudasse a reconstituir os fatos ocorridos durante a ditadura civil-militar brasileira. Em meio a esse conjunto diverso de fontes, algo que sempre me chamou particularmente atenção foram as fotografias.
Fui notando que a maior parte dos registros sobre pessoas LGBTQIA+ na imprensa e no fotojornalismo brasileiro reproduziam visões estereotipadas e estigmatizantes desses sujeitos. Reforçavam-se imagens de pessoas anormais, pecadoras, doentes, perigosas e criminosas. Não era uma invisibilidade, essas pessoas eram, muitas vezes, hipervisibilizadas nas matérias, mas sempre de maneira negativa. Sob o regime de visibilidade então vigente, a única seção dos noticiários em que essas pessoas apareciam eram nas páginas policiais, seja como vítimas moralmente culpadas por seu próprio destino trágico, seja como suspeitas já condenadas por atos de delinquência associadas ao submundo das drogas e da prostituição.
Não foi a ditadura quem inaugurou a prática institucional de LGBTfobia, torturas, prisões arbitrárias, desaparecimentos forçados ou execuções sumárias em nosso país. Tais violências, praticadas e amparadas por agências estatais, remontam à época da ocupação do nosso território pela colonização portuguesa.
No entanto, durante a ditadura, segundo o relatório da já referida Comissão da Verdade, órgão criado em 2012 com o objetivo de apurar as graves violações de direitos humanos, 191 pessoas foram mortas, 210 estão até hoje desaparecidas e foram localizados apenas 33 corpos, totalizando 434 mortos ou desaparecidos. Além disso, foram inventariados 230 locais de violações de direitos humanos. Mais de 6500 militares foram perseguidos por resistirem à ditadura e 377 agentes públicos foram nominalmente apontados como perpetradores de violações aos direitos humanos.
Há muitos outros dados dignos de nota, mas, a despeito dessas cifras já tão impressionantes, fato é que a Nova República foi fundada mais nas estruturas do que nos escombros da ditadura. Muitas das violências apontadas persistiram e seguem até hoje sendo praticadas. Não são “entulhos autoritários” ou “restos da ditadura”, mas como práticas e discursos renovados cotidianamente por atores políticos sob o nosso regime democrático.
O trabalho de memória sobre a ditadura e a nossa justiça de transição tiveram algumas limitações que até hoje se fazem sentir em nosso país. Nos últimos anos, temos assistido a manifestações na frente de quarteis do Exército clamando por “intervenção militar”, temos visto o elogio a notórios torturadores e mesmo pessoas indo às ruas para pedir por um novo AI-5, símbolo do estado de exceção e do endurecimento da ditadura.
Esse cenário reflete como, durante a transição política e o advento de uma nova Constituição do país em 1988, não foi dada a atenção devida ao tanto de ditadura que persiste nas entranhas da nossa democracia. Exemplo disso é que a historiografia e as políticas oficiais de memória não trataram, como temas da ditadura, as questões de raça, etnia, gênero, identidade de gênero e orientação sexual.
É preciso ampliar o entendimento sobre a categoria de “vítimas” da ditadura em nosso país. Não foi somente quem era acusado de ser comunista e de pegar em armas que foi perseguido pelo regime autoritário e se tornou um “preso político”. O golpe atingiu esses segmentos politicamente organizados e que resistiram à ditadura, mas ele também se deu contra as diversidades étnico-racial, de gênero e de sexualidade em nosso país.
A ditadura tentou impor um ideal de pátria grande, de nação homogênea, de ausência de conflitos e de divisões. Toda essa ideologia reforçou a marginalização e a exclusão de pessoas negras, indígenas, mulheres e LGBTQIA+, tidas como um “outro” do universal branco, heterossexual e cisgênero. Esse processo legitimou perseguições estatais e todos tipos de violências contra essas comunidades.
Tal mudança de lente nos permite enxergar como toda sociedade e, especialmente, seus segmentos mais vulnerabilizados, foram impactos de modo mais amplo e profundo pela ditadura.
*Trecho extraído da matéria para a Revista Zum em 2024.
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Renan Quinalha
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